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sexta-feira, maio 21, 2004
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Era uma vez um cronista que escrevia uma crónica que aparecia todas as sextas-feiras num semanário. O cronista era muito bom. Era tão bom que vivia desafogadamente só à conta dessa crónica que escrevia para um semanário que saía às sextas-feiras. Vivia com a mulher e os filhos num duplex em Telheiras
(num prédio novo e feio inspirado em Le Corbusier).
Os filhos eram um casal - um menino de 12 anos e uma menina de 8. Os filhos estudavam num colégio religioso, não por fé, mas porque sim. A mulher do cronista tinha uma bolsa de investigação para fazer uma tese sobre o comportamento da imprensa portuguesa durante as invasões napoleónicas.
O cronista era mesmo muito bom. Todas as sextas-feiras, 141 425 pessoas
(tiragem média do mês anterior)
compravam o semanário e, mesmo antes de ler os títulos da primeira página,
(que se referiam invariavelmente a uma notícia da actualidade ou a uma investigação jornalística)
abriam o jornal na página 12 para lerem a crónica do cronista. Sobre o que é que ele escrevia? Um pouco sobre tudo. Questões de política, de sociedade, curiosidades da sua vida particular. Era sobretudo a forma como escrevia que prendia os leitores. Um estilo muito próprio, mas não demasiado marcado para não causar fastio. Era assim há 258 semanas
(a vida de um semanário conta-se em semanas).
Até que um dia o cronista se fartou da cidade. Quis ir viver para uma herdade no Alentejo. Felizmente nessa época já existia internet e ele pensou poder continuar o seu trabalho com o mesmo brio a partir da sombra de uma azinheira. Falou com a mulher e os filhos. Teve alguma dificuldade em convencer a mulher e os filhos. Ela, porque na herdade não teria acesso às bibliotecas para fazer o seu trabalho. Eles, porque na herdade não teriam os amigos a que estavam habituados. Mas convenceu-os. Porque o dom que tinha para a palavra escrita também o tinha para a palavra falada.
Com parte do dinheiro de uma herança, compraram a herdade
(não quiseram vender o duplex de Telheiras porque daria jeito para incursões à cidade).
Durante algumas semanas as crónicas do semanário que saía à sexta-feira versaram quase todas sobre as peripécias vividas por uma família citadina ao instalar-se no campo. Desde as burocracias, às dificuldades em contratar um determinado serviço, às osgas a subir pelas paredes
(era verão e a casa era branca).
Depois, as coisas entraram nos eixos. A mulher do cronista ia à cidade uma vez por semana tirar fotocópias nas bibliotecas. Os filhos do cronista fizeram novos amigos na escola pública da vila mais próxima
(amigos menos religiosos, porque sim).
O cronista, esse, sentava-se à sombra da azinheira e escrevia a sua crónica. Às vezes de uma forma mais disciplinada, com o computador portátil ao colo. Outras vezes de uma forma mais displicente, com um lápis numa folha arrancada da cara agenda oferecida pela sua irmã.
Ao redor da herdade não havia mais ninguém. Havia a senhora Maria que todos os dias vinha da vila e subia lá a casa para ajudar nas lides domésticas. E havia o senhor Zé
(marido da senhora Maria)
que todos os dias vinha da vila e subia à herdade para tratar da pequena horta e do não tão pequeno jardim. Vinham juntos.
Os amigos de Lisboa gostavam de ir lá ao fim-de-semana regalar-se com um almoço em que todos os legumes eram produzidos no local. As carnes de porco e de vaca tinham sido compradas a alguém da vila mais próxima que tivesse feito uma matança, separadas em sacos de plástico cuidadosamente etiquetados e congeladas.
Até que um dia o cronista ficou sem assunto para as crónicas. Já tinha contado todas as peripécias da instalação da família, já tinha apresentado todas as personagens da vila mais próxima
(onde os filhos iam à escola),
já tinha falado do senhor Zé e da senhora Maria. Simplesmente agora não se cruzava com ninguém na rua que lhe inspirasse uma crónica. Mesmo lendo os jornais e vendo os telejornais, nem sobre política se sentia inspirado a escrever uma crónica. Esgotou os assuntos alternativos, as ideias que tinha em armazém, até fez a clássica não-crónica. Mas um dia não tinha mesmo mais nada para dizer. Era quinta-feira à tarde, ao fundo ouvia-se o barulho de ambulâncias
(devia ter havido outro acidente na auto-estrada),
o telemóvel debaixo da sombra da azinheira tinha ficado sem bateria de tanta chamada não atendida do jornal. Então ele fechou o documento do word onde escrevia as crónicas, abriu um novo, gravou-o com o nome "livro.doc" e começou a escrever um romance. Porque ele sabia que todas as histórias e personagens inventadas são combinações de histórias e personagens da vida real, o livro começava assim: "Era uma vez um escritor que era filho dum ofegante encontro entre uma lavadeira portuguesa e um soldado francês."
Jorge Moniz às 23:23 |
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