sábado, janeiro 31, 2004
Luz
Quando ela incomodava de mais toda a gente, e todos os projectos de turbulência lhe pareciam módicos processos de distracção, desculpava-se velhacamente: "É o cabeçudo..." Porque para ela, não sem um certo amor e conflito moral, o girino vivia no seu ventre como um peixe num aquário, e era confidente de muitas razões que o mundo lhe negava. Sentava-se nas escadinhas em leque, punha-se a esmagar com uma pedra as cabecinhas buliçosas do musgo, e conversava confrangedoramente com o seu girino:
- Vão-me matar qualquer dia. Enterram-me debaixo de uma figueira, e eu tenho que estar quieta debaixo da terra e com as lagartas a fazer-me cócegas. Não gostam de mim, já sabes. Não faço nada de propósito, as coisas já estão feitas e então vejo que aconteceram. Tu, cabeçudo, estás a ouvir-me. Temos os dois a culpa de tudo... (...) Dorme aqui dentro, que queres mais? Conto-te o que vejo, há coisas que só confio a ti. As coisas más. As coisas más são o melhor dos nossos segredos.
Agustina Bessa Luís, in A Muralha
Jorge Moniz às 13:23 |
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