|
|
sexta-feira, junho 27, 2003
De cada vez que eu lá ia, encontrava-o. Sempre com o mesmo casaco castanho, ruço de uso, a mesma mochila aos pés, castanha. Da mochila saía invariavelmente uma agenda daquelas oferecidas pela empresa ou pelo banco. E um lápis amarelo com marcas de dentes na parte de cima. Durante uns segundos rolava o lápis amarelo nos dedos da mão direita, enquanto lia algo na agenda. Depois, por mais uns segundos, segurava o lápis amarelo nos dentes, enquanto folheava com os dedos da mão direita as páginas da agenda.
Nunca escrevia nada. Aliás, na agenda tudo estava escrito a caneta azul. Nas vezes em que estive mais próximo, pude aperceber-me de que era uma caligrafia alongada, ligeiramente inclinada para trás. Quase todos os dias tinham algo escrito - duas, três linhas. Parecia mais tratar-se de frases do que de listas de tarefas. Como se fosse um pequeno diário.
Um dia, a curiosidade venceu o pudor e sentei-me ao lado dele. Não falei logo. Quis aproveitar lentamente o momento, saboreando mais alguns detalhes. Ele folheava a agenda de trás para a frente, o que dificultava a minha tentativa discreta de ler algo que me ajudasse a perceber. Penso que terá notado o meu olhar, pois só parou na capa, onde estava naturalmente escrito o ano a que dizia respeito. E esse ano era cinco anos antes daquele ano em que estávamos.
Respirei fundo e falei-lhe. Desculpei-me pela ousadia, mas que realmente precisava de saber de quem era aquela agenda e o que continha. Ele ouviu-me de cabeça baixa, os olhos na agenda. Depois levantou e rodou a cabeça. Uns olhos fundos e inexpressivos fitaram-me por alguns instantes. A mão direita que segurava o lápis amarelo com marcas de dentes na ponta começou a tremer. Voltou a olhar para a agenda, guardou-a dentro da mochila, de seguida o lápis. Levantou-se, pôs a mochila às costas por cima do casaco castanho ruço de uso e saiu. Não o voltei a ver.
Ainda hoje, passados alguns anos, penso naquele homem. Penso nele todos os dias, ao anotar algo na minha agenda para o dia seguinte.
Jorge Moniz às 09:04 |
|
|
|