(mordidas mansas)














(por vezes bravas)



morder
 
os legumes
e o cacau,
à beira-mar,
em dias
e dias
de enganos;
afundando
ao vento
cogumelos
duns e doutros;
sem nada
de nada
ao colo
e recortando
fotos
de cães.

sacudindo
dias
de conversas
no camarote.

comendo
causas,
políticas
e erros
de um lado
e do outro;
fixando
de repente
o que tem
a praia:
letras
e girafas.



morder
o mundo

 
todos os minutos
todas as horas
todas as semanas
em francês
e em inglês



morder
os sons

 
em 5 minutos
debaixo de água
conhecendo
lendo
sentindo
e comprando



morder
as imagens

 
pessoais
amadoras
profissionais
em movimento
brevemente
aqui



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as palavras

 
sentidas
no escuro
em busca
de tempo



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quinta-feira, julho 24, 2003



Ele viu-a a primeira vez na estação dos comboios. Ficou logo impressionado com a sua beleza. Os cabelos castanhos claros aos caracóis e os lindos olhos azuis. Que eram os piores, segundo lhe diziam. Ela andava na mesma escola que ele e o pretexto para se conhecerem foi a queda inadvertida da bolsa dos lápis. Ele precipitou-se a apanhá-la e a devolvê-la. Ofegante, balbuciou algumas palavras, gaguejou, corou e foi-se embora. Não sem antes ficar a saber o nome dela.
Em algumas outras ocasiões se encontraram e ele fez a mesma figura. A beleza dela era ofuscante, embaraçante. Por isso arranjou uma artimanha para afastar o padre do confessionário, quando ela se preparava para falar dos seus puros pecados de adolescente. Tomou o lugar do prior e falou com ela. Como não podia ver a sua face com nitidez, pôde abrir o coração. Ela respondeu que o achava um rapaz muito simpático e até atraente, mas não o amava. Ele disse que não se importava de esperar. Iria para perto de casa dela todas as noites, até ela abrir a janela. Na noite de ano novo desistiu. Dias depois, ela foi ter com ele e não foi preciso dizer nada.
Passavam o tempo juntos. Às escondidas do pai dela, naturalmente. Corriam um atrás do outro pelas searas e, ofegantes, sujavam as caras, e o que mais viesse no caminho dos pingos, ao comerem as amoras apanhadas por ali.
Até que ele teve de ir para o exército. Mas não perderam o contacto. Ele escrevia-lhe cartas a uma velocidade tal que tinha permanentemente cãibras nos dedos da mão direita e o dinheiro mal chegava para o papel e para a tinta. A certa altura as cartas começaram a ser devolvidas: 'Endereço desconhecido', dizia o carimbo. Escreveu para outras pessoas, vindo a saber que a família dela se tinha mudado, ninguém sabia bem para onde. Não desistiu. Quando voltou a casa, inquiriu todas as pessoas da aldeia. Tentou escrever a outros familiares dela, mas só sabia as cidades onde habitavam e também estas cartas foram devolvidas.
O tempo passou e ele seguiu a sua vida, agora na cidade. Quando a sua mãe telefonava, a mulher que atendia era sempre outra e nunca se notava algum amor na voz dessas amantes.

Muitos anos depois, ele voltou à aldeia para acompanhar, na sua última viagem, o seu mestre. Num conjunto de velhas fitas de cinema que lhe deixou ainda palpitavam as filmagens experimentais da chegada de um comboio à estação, de onde descia uma jovem de cabelos castanhos claros aos caracóis e lindos olhos azuis. Que eram os piores, segundo lho tinham dito há muito tempo. Foi ao rever a fita que se lembrou da história contada pelo seu mestre:
"Um soldado apaixonou-se por uma princesa, mas ela não se mostrou muito impressionada e disse-lhe: 'Passa cem dias e cem noites debaixo da minha varanda no palácio. Se aguentares tanto tempo, casarei contigo'. O soldado passou a viver ao sol, ao frio, à chuva, ao vento e, ao fim de sessenta dias, tinha uma febre que o fazia delirar, os pés permanentemente encharcados e uma dor de cabeça latejante. Com mais algumas semanas de melhor tempo, o soldado recuperou bastante. Ao nonagésimo nono dia estava em perfeita forma física e foi então que se foi embora."
Ele era muito jovem e cego pelo amor quando ouviu esta história e não percebeu a atitude do soldado. Agora, à distância de muitos anos, compreendeu tudo. Assim como o soldado tinha compreendido. Mas era muito tarde. Tinha perdido uma vida agarrado a uma ilusão, para só agora perceber que ela (a rapariga da estação ou a princesa, pois são uma e a mesma pessoa) não se apaixonara por ele (o rapaz do cinema ou o soldado, é indiferente), mas sim pelo amor que ele tinha por ela.

Foi há mais de dez anos que vi este filme e na altura fiquei com aquela sensação de estar apaixonado por ninguém em especial. Não me lembro quem disse que amamos em permanência alguém que não existe. Ocasionalmente encontramos boas aproximações a esse ideal e julgamos amar essas mulheres. A ilusão pode manter-se muito tempo, até a vida toda, não faz grande diferença. Porque as ilusões só o são quando acabam.

Jorge Moniz às 10:59 |