(mordidas mansas)














(por vezes bravas)



morder
 
os legumes
e o cacau,
à beira-mar,
em dias
e dias
de enganos;
afundando
ao vento
cogumelos
duns e doutros;
sem nada
de nada
ao colo
e recortando
fotos
de cães.

sacudindo
dias
de conversas
no camarote.

comendo
causas,
políticas
e erros
de um lado
e do outro;
fixando
de repente
o que tem
a praia:
letras
e girafas.



morder
o mundo

 
todos os minutos
todas as horas
todas as semanas
em francês
e em inglês



morder
os sons

 
em 5 minutos
debaixo de água
conhecendo
lendo
sentindo
e comprando



morder
as imagens

 
pessoais
amadoras
profissionais
em movimento
brevemente
aqui



morder
as palavras

 
sentidas
no escuro
em busca
de tempo



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o passado

 
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quarta-feira, fevereiro 04, 2004





Todas as noites olhavas as mesmas pás vermelhas do mesmo moinho, entravas no mesmo cabaret, subias para a mesma cadeira, junto à mesma mesa, ajeitavas o mesmo chapéu, afagavas a mesma barba, pedias o mesmo cognac, o mesmo absinto e desenhavas as bailarinas, que nem sempre eram as mesmas, mas que dali a alguns dias estariam em cartazes a anunciar os espectáculos desse mesmo cabaret. Os tipógrafos levavam as mãos à cabeça, que loucura é esta, que cores são estas impossíveis de imprimir. Ao que respondias: eu misturei tintas, o senhor só tem que misturar pigmentos.

Sempre me fascinou a tua maneira de pintar e desenhar. Não tanto nos tais cartazes encomendados, mas em telas mais pessoais. Às cenas de superficialidade dos cabarets, prefiro as cenas que nasciam da tua melancolia interior: a criação raramente é produto das horas felizes. Eram cenas de que fui copiando as cores, o traço do desenho, os contornos dos rostos. Mas ao imitar conscientemente as qualidades, acaba-se também por seguir os defeitos, faz o que eu digo, não faças o que eu faço. A tua torturada personalidade e os teus complexos transformaram-se na minha inveja. A indizível inveja entre amigos, Henri, que é a que rói mais fundo e mais corrompe, porque nunca assumida. Com o passar do tempo, fui estudando e aperfeiçoando-me e acabei por criar um estilo que penso ser meu, sendo que nunca inventamos nada de completamente novo, antes fazemos combinações originais do que já existe.

Era sentado naquela cadeira, àquela mesa, naquele cabaret, que te sentias mais igual aos outros. Os outros que assim não podiam ver a tua verdadeira estatura, o tamanho das tuas pernas. Era-te difícil tentar explicar a todas as pessoas que as tinhas partido em criança, uma de cada vez, e que uma deficiência de cálcio as impediu de crescer. Era-te difícil discutir olhos nos olhos quando estavas de pé. Era-te difícil tornares-te atraente para as mulheres. Era-te difícil não beber para esquecer. Era-te difícil depois não pagar a uma rapariga do passeio ou de um bordel. E foi-te enfim difícil admiti-lo, quando te apaixonaste por uma delas. E por causa dessa visão da vida tristemente distorcida, viste piedade onde havia amor. Por cobardia, por não acreditares que podias ser amado, ficaste a mastigar o que sentias e não o assumiste. E ela acabou por partir. Então tu abriste todas as torneiras de gás dos candeeiros de tua casa e não os acendeste. Depois arrependeste-te e, com a mesma lentidão, fechaste as mesmas torneiras e abriste as janelas. A dor, essa, continuava lá. E o insuportável, o insustentável, não é a dor, é a facilidade com que se lhe sobrevive, com que ela se torna leve: insustentável é a leveza do ser.

Apesar de já teres uma idade respeitável, vem a tua mãe e o louco do teu pai e levam-te de volta para Toulouse, onde o que tinha de acontecer aconteceu. Sim, eu sei que não foi pelas tuas mãos, foi doença súbita, mas a vontade conta muito nestas coisas.

Jorge Moniz às 09:07 |