A China
Nas discussões sobre o crescimento brutal das exportações da China para o mundo ocidental, há um argumento que de vez em quando é atirado para o ar: a qualidade. Eles conseguem aqueles preços com exploração de mão-de-obra e outras reduções de custos, o que só pode provocar menor qualidade dos produtos. A ideia é que mais tarde ou mais cedo terão de melhorar a qualidade, tornando os preços mais competitivos com os dos produtos feitos do lado de cá. Não é assim tão simples, mas é verdade que o potencial para saírem asneiras é grande. Temos, por exemplo, deste fim-de-semana quatro barcos de metanol a arder, sendo de desconfiar das capacidades de controlar a poluição de um rio que mata a sede a 5 milhões de pessoas.
Outros exemplos têm aparecido com produtos importados como os recentes brinquedos, marisco, pasta de dentes, alimentos de animais, cobertores, etc. Os casos de devoluções e cancelamento de contratos avolumam-se e o governo chinês já se inquieta.
O que depois não aparece com igual destaque nas notícias é o impacto local destes problemas, sobretudo em empresas que vivem da exportação. Por exemplo, a empresa que fornecia os brinquedos pintados com tinta contendo chumbo fechou 3 fábricas, despedindo um total de 5000 pessoas. Um dos patrões, o senhor Zhang, visitou as 3 fábricas, conversou com os trabalhadores e garantiu que iriam receber o seu último salário após terem cessado as encomendas. Depois enforcou-se no armazém de uma das fábricas.
Jorge Moniz às 22:21 |
segunda-feira, julho 16, 2007
Era o varão de ferro já torto com capa de plástico branca a bater na bancada para exigir o silêncio (porque os de madeira partiam-se). Era o cachimbo. Eram os paus de giz a voar na direcção de quem estivesse a conversar. Eram os pontapés no electrão. Eram os exames de Química II com perguntas do arco da velha. ("O que tem em comum a jóia da coroa, a Dinamarca e o lápis com que fez as suas cábulas?") Era o traje de Oxford. Eram os gestos largos, as passadas pausadas. Eram os dedos, claro. Era a voz possante. Era a aula das seis a começar não antes das seis e dez. Era a primeira aula de Química I de cada ano a ser assistida por alunos de todos os anos e professores avulsos. Era o velho BMW branco a criar ervas debaixo. Era o gabinete caótico. Era dizer-nos logo no primeiro semestre do primeiro ano “vocês não tenham ilusões, os químicos morrem mais novos”. O Professor Romão Dias faleceu ontem, com sessenta e poucos anos. Uma criança.
Homenagens de alunos, colegas e não só: aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui. Nos jornais: aqui. Na Sociedade que fundou: aqui. Entrevista pelos seus 60 anos, com nota biográfica: aqui.
Jorge Moniz às 19:33 |
domingo, julho 15, 2007
Ao contrário do que é de bom tom, eu tendo a pensar que as elevadas abstenções dizem mais dos abstencionistas do que dos candidatos.
Jorge Moniz às 21:53 |
terça-feira, julho 10, 2007
Papel afixado numa conservatória do registo civil: "Em virtude da informatização do sistema, para a passagem de certidões de óbito passa a ser necessário além da documentação normal, a seguinte:" (segue-se uma lista com meia dúzia de itens)
Ou seja, já que o computador permite libertar algum tempo de mão-de-obra, criam-se novas necessidades.
Jorge Moniz às 19:03 |
À medida que o tempo passa sobre a morte de pessoas próximas, como os nossos avós, há memórias que se perdem e outras que permanecem, que se tornam mesmo recorrentes. Há uma mão cheia de episódios passados com o meu avô de que me lembro amiúde. Sendo naturalmente um homem de outra geração, em que a minha avó era doméstica e mãe de cinco, a divisão de tarefas em casa não tinha nada a ver com o que já vai acontecendo hoje. Por exemplo, o meu avô não gostava das meias a apertar os tornozelos. Por isso, cada par que comprava entregava à minha avó para ela cortar os elásticos do cano da meia. Mas noutras situações, ele ajudava. Certo dia assisti aos meus avós a fazerem a cama, um de cada lado. Disse-me o meu avô que duas pessoas a fazer a cama dava menos de metade do trabalho a cada uma do que se fosse uma única pessoa. Não precisamente metade, mas menos de metade. Eu era criança e fiquei a pensar naquilo, a contar as voltas à cama que uma pessoa sozinha tem de dar. Realmente era verdade. E à sua maneira era o próprio conceito de trabalho em equipa que se aprende hoje: trabalho em grupo é 1+1=2, trabalho em equipa é 1+1=3. Lembro-me do meu avô uma vez por semana, ao entalar lençóis de trás para a frente.
Jorge Moniz às 21:43 |
domingo, junho 17, 2007
Antigamente a maioria das pessoas saía de casa dos pais para casar. Só viviam sozinhas quando enviuvavam (impressionante quantidade de v's numa frase). Por isso nunca criavam hábitos solitários. Hoje o mais normal é pelo menos um dos cônjuges (ou concubinos) ter passado alguns anos a morar sozinho. Nesse período de tempo, decora-se uma casa ao seu gosto, sai-se e entra-se de casa quando se quer sem ter de prestar contas, faz-se barulho a qualquer hora da noite, pode-se ser maníaco da limpeza ou deixar acumular sujidade, é-se o único responsável e espectador, em suma, cultiva-se o ego (seja com -ismo ou -centrismo). Depois destes anos, como é que se passa a conviver com alguém no mesmo espaço? Como compatibilizar gostos estéticos na decoração do espaço? Como se habituar ao ressonar do outro todas as noites? Ter uma insónia e não poder ligar o rádio? Não poder dormir atravessado? Terem de jantar (ou pelo menos tentar) a mesma coisa? E os canais de televisão? Apetecer passar umas horas sozinho e ter de sair de casa para o fazer? Pior: ter de explicar bem porquê e talvez aturar desconfianças (a um pequeno passo de cada um começar a espiar as sms's do outro). Não esquecendo, claro, os clichés verdadeiros da tampa da sanita levantada e da pasta de dentes apertada no meio (qualquer pretexto serve). Durante esses anos de "solidão" não se desenvolveram, antes pelo contrário, as capacidades de compromisso e cedência para um bem comum. Perde-se adaptabilidade. E essas pessoas com certeza irão ter mais dificuldades do que os outros. Alguns com capacidade financeira para isso, optam pelo together apart. Os outros ou conseguem ou não. Tão simples quanto isso. Mas há quem consiga. Claro.
Jorge Moniz às 11:38 |
Hoje, como noutros dias, não tenho nada de especial para dizer. Mas posso.
Jorge Moniz às 08:04 |
quarta-feira, abril 04, 2007
X Y
Os homens têm um cromossoma Y. Quando conhecem alguém, digamos que é um caminho que começa na base do Y. Durante a subida, vão-se aprendendo coisas um do outro e os sentimentos em desenvolvimento podem vir a ser de amizade ou algo diferente. Isso fica claro na bifurcação do Y. A partir daí, não há volta a dar-lhe. Se o homem se apaixona, segue pelo braço esquerdo do Y e já não vai poder ser amigo. E vice versa. Só há dois caminhos bem claros e sem regresso. Às mulheres corresponde a letra X. Ora esta letra é completamente simétrica. Não se percebe qual é a base, o início, aquilo pode começar por qualquer lado, acabar em qualquer lado, até voltar ao cruzamento para perceber melhor onde se anda e para onde se quer ir. Enfim, uma confusão.
Jorge Moniz às 21:47 |
sábado, março 24, 2007
Astros
Somos planetas sem um sol à volta do qual rodar. E assim andamos à deriva, por vezes mais a direito, parecendo decididos, confiantes; por vezes às voltas, parecendo indecisos, inconstantes; mas sempre tentando descobrir um caminho aqui e ali. Ocasionalmente a atracção universal entre os corpos faz com que um ou vários planetas se aproximem de nós. Então fazemos um percurso em comum, até a gravidade fraquejar ou aparecer outra força mais forte que nos faça desviar do caminho. Há pessoas, planetas, com quem passamos a vida toda, a uma distância maior ou menor. Há amizades que são sólidas em contactos quase anuais e durarão décadas; outras que são intensas, sedentas e se esfumam num ápice. E quem diz amizades diz outro tipo de relações. Porque quanto mais depressa os planetas se aproximam, mais facilmente podem fazer ricochete e afastar-se. Se os caminhos forem quase paralelos, a aproximação é lenta e o trajecto em comum mais prolongado. Fora deste simplismo bimodal, há aquelas pessoas que em dada altura fazem uma parte do caminho connosco e depois desaparecem. Ou desaparecemos nós. Sem razão aparente. Porque é assim e nem todas sobrevivem ao tempo. Ou porque quando nos conhecemos havia um alinhamento especial dos planetas que se perdeu. Só que a água não passa duas vezes por baixo da mesma ponte, mas pode passar por baixo de outra ponte. Às vezes há reencontros e os mesmos planetas podem percorrer novos percursos juntos. Entre órbitas mútuas e múltiplas, derivamos menos do que julgamos.
Jorge Moniz às 10:54 |
quarta-feira, março 07, 2007
Traquina
A nega sempre foi traquina. Quando era neguinha era tão traquina que pagava pelas partidas que pregava e pelas que não pregava. Um dia, na escola, o colega da carteira de trás não parava de lhe puxar o cabelo. Mesmo na nuca onde dói mais. Ela disse à professora uma e outra vez e a professora sempre a ameaçá-la e não ao colega. Até que ela se fartou e atirou o colega ao chão com um soco. As marcas do castigo de joelhos em cima do sal ainda hoje são visíveis. O que eles não sabiam é que ela, a neguinha, já tinha aprendido a ler antes de ir para a escola. Na casa onde a sua família trabalhava havia muitos livros e ela, traquina, foi aprendendo aqui e ali, com a ajuda da matriarca da família. Pela altura em que já lia livrinhos de BD, andava a patroa com um livro de lombada grossa. Tinha uns 10 cm de altura de páginas. A neguinha maravilhada com o tamanho daquele livro, com o tempo que demorava a ler, a patroa maravilhada com o conteúdo proibido. Um dia a neguinha conseguiu pôr os olhos na capa do livro. Entre outras palavras grandes que não conseguiu ler, havia a palavra "sexo". A neguinha era nova demais para saber o que isso era, mas levou o livro com ela. Traquina. Andava na rua a brincar quando a senhora gritou da porta "onde está o livro que eu tou lendo?". Ela respondeu com voz de 20 metros de distância "o de sexo?". A senhora colou vertical o dedo indicador nos lábios com ar assustado (na época essa palavra não se dizia em voz alta). A neguinha insistiu "o de sexo? o de sexo?". As marcas desse castigo também ainda as tem hoje, mesmo depois das marcas que deixam dois maridos, dois filhos e milhares de quilómetros (ou anos) de viagem.
Jorge Moniz às 20:50 |
sexta-feira, fevereiro 23, 2007
Pão quente
Ela tem a idade do meu pai, mas parece ter mais 20 anos. Desde que me lembro que me parece velha e acabada. É a vida que faz a cara das pessoas e ela teve pouca sorte: marido alcoólico e violento, filhos ingratos, pobreza generalizada. Em tempos idos chegou a fazer limpezas em nossa casa e na escola da minha mãe. Uma das filhas foi a minha ama. Nunca me esqueço da fotografia que temos os dois sentados num barco de pescadores e do raspanete que a minha mãe lhe deu quando a apanhou a namorar debruçada no muro em vez de estar a tomar conta de mim. A senhora sua mãe é daquela espécie rara de pessoas que são extremamente religiosas e cumprem o que ouvem na igreja em termos de uma absoluta falta de maldade, fazer o bem sem olhar a quem, dar a outra face, em suma tudo o que na sociedade hoje em dia se chama ser otário. Pelos trabalhos que a minha mãe lhe foi arranjando a ela e à filha, pelas nossas roupas em segunda mão que lhes são oferecidas e o mais que houver, ela demonstra sempre uma eterna gratidão, nunca se esquecendo de uma data de aniversário da nossa família. Mas muito melhor do que qualquer presente que ela possa dar, é o pão que coze no forno. Faz sempre um a contar connosco e trá-lo embrulhado num pano para conservar o calor. Quando eu e a minha irmã estamos, mesmo que tenhamos acabado de almoçar ou jantar, corremos a buscar a faca, a lutar para ver quem fica com a "maminha" e regalamo-nos com a manteiga a derreter naquele pão ainda bem quente. Quando penso na idade da senhora, lembro-me que provavelmente nenhum dos filhos aprendeu a cozer o pão daquela maneira e que ninguém o continuará. E lembro-me que, tal como a minha avó, ela diz sempre o meu nome com um "z" no lugar do "g".
Jorge Moniz às 20:12 |
quarta-feira, fevereiro 14, 2007
Era uma vez...
... um menino que um dia perguntou à mãe por que é que as pessoas mais ricas eram mais bonitas que as pessoas mais pobres. Chocada, ela disse-me que não era assim, que a beleza não tinha nada a ver com o dinheiro. Muitos anos depois o que é que eu penso disso? Bom, naquelas reportagens que aparecem nas revistas e na televisão sobre festas vip, todos os convidados dizem que gostam de ir ali porque é onde há "gente bonita" e eu normalmente só vejo gente feia cheia de maquilhagem e roupa extravagante (com destaque para os homens de calças vermelhas). Por outro lado sabe-se que nem sempre os vip são quem tem dinheiro. Mas acho que talvez um pequeno fundo de verdade exista naquilo que eu disse em criança. Uma pessoa esteticamente agradável pode ter a sua auto-confiança favorecida e isso melhorar o seu relacionamento com os outros, ou até mesmo o desempenho profissional. E estes dois dados podem contribuir para o enriquecimento financeiro. É quase uma selecção natural. Há depois os milionários que têm filhos de jovens esbeltas, o que dará herdeiros ricos e belos. Aliás, independentemente do dinheiro, a beleza tem um papel na evolução da espécie humana. É sabido que as avós costumam dizer que a geração dos netos é muito mais bonita que a deles. Porquê? Porque as pessoas mais bonitas terão mais tendência a reproduzirem-se do que as menos bonitas e ao longo das décadas e séculos, em média vamos ficando mais belos. E o que dizer do desgraçado do feio no meio disto? Trabalhe e esforce-se, que 99 % do sucesso profissional e pessoal tem a ver com isso e não com a beleza. As linhas de cima são sobre o restante 1 %, ou nem tanto, que ainda falta aqui a sorte.
Jorge Moniz às 21:24 |
sábado, fevereiro 10, 2007
Regra básica
Numa sociedade, o Estado só pode dizer que é crime aquilo que a generalidade da população considera crime. Por generalidade entende-se algo muito superior a 50% + 1.
Jorge Moniz às 15:50 |
sábado, fevereiro 03, 2007
Em Portugal pode haver muita gente a escrever com erros ortográficos, mas devemos reconhecer que ao transcrever nomes estrangeiros de pessoas, cidades, empresas, etc, há um certo cuidado. Pelo menos mais do que outras nacionalidades têm. Tendo trabalhado em alguns países, já vi o meu nome ser mutilado das mais variadas formas. Os franceses e os espanhóis em particular têm muito pouco jeito para alinhar as letras certas na ordem certa. Às vezes nem a copiar de um papel para o outro. Uma dificuldade adicional são os acentos gráficos. Felizmente no meu nome completo só há um e costumo safar-me a esse problema. Mas ontem apareceu uma gralha inovadora. Uma senhora alemã conseguiu, ao copiar o nome da empresa onde trabalho, transformar a palavra "Químicas" em "Qucas", que aparece agora em todo o esplendor num folheto distribuído por toda a Europa.
Jorge Moniz às 12:50 |
segunda-feira, janeiro 29, 2007
Livros (incluindo a trilogia do Zimler)
Não sei quantos livros já foram escritos ao longo do tempo em todo o mundo. [vamo-nos limitar a romances e afins] Não sei quantos romances e afins já foram escritos ao longo do tempo em todo o mundo. O que eu sei é que cada vez que começo a ler um livro tenho uma sensação de desconforto, de casa desarrumada, por estar a ler aquele livro antes de ler todos os que foram escritos antes. Porque assim não vou poder compreendê-lo em todos os seus níveis, perceber todas as fontes de inspiração, ou mesmo plágio, do autor.
Na primeira edição italiana de "O Nome da Rosa", Umberto Eco incluiu uma nota aos leitores que nunca mais apareceu. Nela dizia que o livro se dirigia a três tipos de leitores diferentes. O primeiro, leria o livro simplesmente como um romance policial histórico. O segundo, já mais cultivado, descobriria algumas piscadelas de olho ao presente existentes no livro. E o terceiro, reservado apenas aos especialistas em literatura, perceberia que este romance é tão só uma manta de retalhos de outros livros. Eu consegui chegar em parte ao segundo tipo de leitor, mas apenas com batota: fui ao google depois de ler o livro. E descobre-se por exemplo que o par de protagonistas é inspirado em Sherlock Holmes: William of Baskerville é o nome do frade investigador, acompanhado de um ajudante curiosamente chamado Adzo, que também é o narrador, tal como Watson. Para mais, o tipo de inferências feitas na investigação é do mesmo género. Há uma homenagem a Jorge Luis Borges, chamando a um dos monges Jorge de Burgos, também cego. Há um pano de fundo baseado na história da Itália nos anos 70, que nos passa naturalmente ao lado. Há até uma citação anacrónica de Wittgenstein. E depois o falso manuscrito. Que é o truque de num prefácio o autor nos querer convencer que tudo o que vai relatar é baseado num manuscrito que lhe veio parar às mãos. Entre outros, também o fizeram Cervantes no "D. Quixote" e recentemente Richard Zimler n"O Último Cabalista de Lisboa". [e aqui finalmente cheguei à trilogia do Zimler]
Voltando ao início, passa-nos muita coisa ao lado por não lermos todos os livros do mundo pela ordem em que foram escritos. Naturalmente não há tempo. Talvez para uma selecção criteriosa. Na primeira parte das suas memórias (e por falar nisso não era má ideia que ele se despachasse com o resto), Gabriel García Márquez conta como no início da sua carreira como jornalista e escritor de contos, foi aconselhado a ler os clássicos, porque está lá tudo.
E ainda há o pequeno detalhe de termos lido bastantes livros em idades em que intelectualmente não podíamos apreender tudo. E quantas vezes os relemos? Por exemplo, o que é que eu sabia da sociedade portuguesa e europeia do século XIX quando li "Os Maias"? É bem provável que 90 % das ironias do Eça me tenham passado ao lado com uns 15 ou 16 anos.
Jorge Moniz às 21:49 |
quinta-feira, janeiro 25, 2007
Post chato
Entre nós e o mundo existem duas massas de tecido orgânico branco, chamadas olhos. Para vermos as verdadeiras formas e cores das coisas, precisaríamos de os arrancar, porque não sabemos se o que eles nos transmitem é verdadeiro. Os olhos são sólidos, a informação não entra directamente em nós. Foi nesta linha que Platão desenvolveu a alegoria da caverna: um grupo de homens preso dentro de uma caverna, com vista apenas para a parede do fundo onde vêm silhuetas distorcidas e monocromáticas do mundo lá fora. Se eles estivessem ali desde nascença, o mundo era assim para eles: sombras, bidimensional. E se um deles fosse libertado, viesse cá fora e voltasse, seria considerado um louco pelos outros, ao ouvirem as suas descrições. Aliás, isto está tudo no 2001 de Stanley Kubrick ou Arthur C. Clarke. E além da alegoria da caverna, com as cenas de imagens psicadélicas que simbolizam a verdadeira cara do universo, há a teoria da reminiscência, segundo a qual depois de morrermos atingimos a sabedoria total. Ao voltarmos a nascer esquecemos tudo e durante a vida não aprendemos, mas vamos lembrando (daí o ar altivo do feto sabedor que paira sobra a Terra no fim). Tudo resumido numa frase, as aparências podem iludir. Há um episódio da Twilight Zone sobre isto: um casal que não percebe onde está e descobre que tudo à volta são objectos falsos, até descobrirem que foram raptados por extra-terrestres gigantes e agora são os brinquedos de uma criança, numa espécie de cidade Lego. Ora quando alguns de nós, tal como a Sofia e o professor Alberto, desconfiamos que não passamos de personagens de um criador, de marionetas, instala-se a dúvida sobre a atitude a tomar: soltamos os braços e deixamo-nos levar pelos movimentos dos cordéis, ou tentamos controlar nós os acontecimentos? E neste segundo caso, o que pensamos fazer de livre vontade não poderá estar afinal também escrito?
Jorge Moniz às 22:35 |
domingo, janeiro 21, 2007
Trânsito lento
Rotinas. Algo na sua infância o devia explicar, mas era viciado em rotinas. Pendurava a roupa por zonas no estendal, as meias de um lado, as camisas do outro, os lençóis no meio. Contava sempre as meias ao tirar a roupa da máquina, para verificar se estavam em número par. Os talheres na mesa eram alinhados ao milímetro, as cadeiras sempre encostadas. O pó era limpo diariamente. O caminho para o trabalho era sempre o mesmo, a padaria também, os dois pães de centeio matinais idem. Nada perturbava a rotina, excepto certa caixa de hipermercado, de pele branca, olhos azuis e ar de quem não devia estar ali. Fazia-o ir às compras quando não precisava de nada, apenas para ver se ela lá estava. Nesse caso, escolhia sempre a fila dela, mesmo que demorasse mais tempo. No dia em que na padaria não houve, pela primeira vez em cinco anos e três meses, os dois pães de centeio, ele respirou fundo e decidiu tentar meter conversa com ela na altura de pagar as compras que ainda não tinha decidido fazer. Enfiou-se no carro, passou pela primeira, pela segunda, pela terceira rotunda no caminho para o hipermercado. Na quarta rotunda um Honda Civic entrou-lhe pela porta dentro.
Jorge Moniz às 10:58 |
quinta-feira, janeiro 18, 2007
As palavras e as guitarras
(falanges enferrujadas - escrever sobre a dificuldade em escrever é, no momento, difícil. Escrevo, apago, mudo, corrijo)
Que factores fazem com que em certas alturas haja uma maior facilidade em alinhar palavras do que noutras? Há a idade. Há a estabilidade emocional, ou a falta dela. Há a disponibilidade de tempo. Há a leitura de outras palavras. E há a vontade. Sendo que a vontade de escrever não implica que haja inspiração para o fazer. Já o contrário tende a ser verdade.
Na época áurea desta quitanga, [repare-se no ego do autor] eu encontrava-me a viver sozinho, numa cidade estranha, todos os dias aprendendo muito de uma cultura diferente, viajando de transportes públicos o que me permitia ler um livro por semana. Caldo apurado para escrever muito. Neste momento tenho um emprego absorvente, por mérito próprio, [mérito dele, o emprego] portanto a menos que me ponha a escrever sobre questões técnicas ou organizacionais, há pouca fonte de inspiração.
A tese deste texto é que devemos forçar essa inspiração. Criar as condições. Há uns tempos conheci alguém que trabalha em música e ficou chocado ao saber que tendo eu tido formação e gosto, há muito tempo não limpo o pó ao teclado nem o verdete às cordas. A resposta comum é que as idades vão evoluindo, as responsabilidades mudam, o tempo disponível diminui. Irrelevante. Com uma boa gestão do tempo e vontade, conseguimos manter as actividades extra que nos dão um prazer particular. Basta fugir dos pretextos para a preguiça. E dos adiamentos.
Jorge Moniz às 22:03 |
segunda-feira, janeiro 15, 2007
Há quase dois anos que não escrevia aqui.
Muita coisa mudou entretanto. Mudei eu, mudaram as minhas circunstâncias, mudou o país à volta, até o mundo. Ou então não, está tudo igual. Qual é a importância dos pequenos eventos no curso global da história? Os historiadores fatalistas dizem que é nenhuma, os pirronistas dizem que é total. Houve evoluções geográficas, profissionais, pessoais. E hoje, 15 de Janeiro, é dos dias mais importantes que já vivi.
Durante quase dois anos não escrevi aqui. Durante os dois anos anteriores fi-lo quase diariamente. Quem esteve desde o início sabe que este espaço foi criado quando fui trabalhar para Paris. A ideia era manter o contacto com os amigos de uma forma diferente, cada um publicando pequenas notícias e acontecimentos do dia-a-dia. Os blogs estavam ainda a aparecer, a explosão viria alguns meses depois. Quando leio agora esses textos não deixo de sorrir com a ingenuidade das palavras. Com o tempo, acabei por ficar só eu a escrever e a não escrever só crónicas de emigrante. Nunca consegui manter uma linha editorial restrita. Houve política, humor, desabafos, escrita criativa. E conheci pessoas por causa dessas palavras. Alguns portugueses em Paris, outros portugueses em Portugal. Criei laços que felizmente ainda mantenho. Continuo a ler alguns blogs que lia nesse tempo. Sim, tenho continuado por aqui. Vou vendo como essa tal coisa da blogosfera foi evoluindo, nos vários registos. Há para todos os gostos, todos os temas, todas as cores. Ainda há dias me surpreendi quando num telejornal falavam de adolescentes que fazem nos seus blogs o culto da anorexia. Já não é novidade. Já se sabe que há blogs de análise política e social que são referências, já se detectam os blogs de engate à distância e não se censura - é apenas mais um meio em que duas pessoas se podem conhecer. Já não se fazem aqueles debates e jantares sobre a novidade da coisa que se faziam no início.
(estes links que tenho aqui ao lado, a maior parte deles já nem deve existir. não sei se os vou alterar, o trabalho que me deu alinhá-los em frases)
Agora que sacudi o pó, abri as páginas e empunho a caneta, o que vou escrever por cá? Que tipo de coisas, dois anos depois, dois anos mais velho? Não sei. Vou rodando a caneta entre os dedos.
Jorge Moniz às 21:44 |
A casa-de-banho é por excelência um local de reflexão.
Há quem o consiga fazer também no caminho para o trabalho. Mas não é a mesma coisa. Se vamos de carro, há o rádio ligado. Se vamos de transportes ou a pé, há outras pessoas a observar e estudar. No resto do dia temos o cérebro entretido, por isso aqueles minutos em que nos fechamos na casa-de-banho, de manhã, a meio do trabalho, à noite, são diferentes. Não há nada a fazer a não ser olhar para as paredes, contar azulejos, ou esfregar o sabonete. Tudo tarefas com que o cérebro pode lidar de forma inconsciente. E deixar a consciência saltar de neurónio em neurónio aleatoriamente. É na casa-de-banho que aparecem ideias novas, que nos lembramos de algo esquecido, que resolvemos um problema. Nos tempos dos trabalhos de grupo na universidade, chegávamos a estar os quatro bloqueados em frente ao computador. Um colega meu tinha de ir à casa-de-banho e quando saía de lá uns minutos depois dizia "já sei".
Ontem durante o banho tive uma epifania. Vou ressuscitar o blog. (só depois pensei se teria alguma coisa a dizer)
Jorge Moniz às 21:05 |